A vida nos ensina muita coisa e encontra maneiras sagazes de nos fazer entender nossos erros.
Lembro da minha adolescência e boa parte da vida adulta e penso no
quanto tornei a vida dos que me rodeavam – e a minha própria vida –
infinitamente mais difícil apenas porque, além de não aceitar minha
deficiência auditiva, eu também me recusava a fazer qualquer coisa a
respeito. Quando surgia algum ímpeto de coragem, comprava novos
aparelhos auditivos, mas logo o ímpeto se transformava em desânimo e
eles eram esquecidos dentro da caixinha. Acho que comecei a encarar a
realidade só lá por 2009, ou seja, façam as contas e vejam quantos anos
perdi por birra, teimosia, burrice e egoísmo. Acho que é
por isso que sou tão chata e ríspida quando alguém me procura para
dizer que sente vergonha de usar AASI. Pensando nos anos em que
dificultei tudo para mim e para os que me rodeavam é que decidi escrever
esse post.
Que me desculpem aqueles que discordam mas é muito egoísmo consigo e com os outros não fazer nada a respeito da surdez quando algo pode ser feito.
Explico. Se você pode usar aparelhos auditivos para ouvir as coisas
(sair de uma surdez severa ou moderada e ir para uma surdez leve, por
exemplo) e se recusa a fazer isso usando argumentos pobres e infantis
como ‘Não quero’, ‘Não me adapto’, ‘Não gosto’, ‘Não estou a fim’,
‘Não enche meu saco’, ‘Não é como minha audição natural’, ‘Estou ótimo
assim’, meu caro, você está extrapolando todos os limites do bom senso.
Nem vou citar as pesquisas recentes que mostram o que acontece com o
cérebro humano quando este precisa lidar com a nossa privação sensorial.
Ser surdo não é motivo apenas para ‘conseguir um benefício‘, como dizem as dezenas de emails que recebo toda semana pedindo o caminho das índias para se ‘aposentar por invalidez ou se encostar no INSS‘. Ser surdo afeta a sua vida em TODOS os níveis e afeta a vida da sua família da mesma maneira.
A inspiração para pensar e escrever essas palavras veio da convivência intensa que venho tendo há 20 dias com a minha amada vó Tereca.
Estou tentando convencê-la a fazer uma audiometria desde que ela me
visitou no Rio de Janeiro em fevereiro, sem sucesso. Aqui, ficou mais
claro do que nunca que ela precisa fazer já para descobrir qual grau de
perda auditiva tem e então ver qual providência tomar – leia-se qual
AASI comprar. Mas não! Não há o que faça a Tereca mudar de idéia.
Rechaça todas as minhas tentativas. Diz que é uma bobagem, uma besteira,
está ouvindo só o que quer e que eu a deixe em paz. E eu fico louca
tentando arrastar a vó para uma fono porque me enxergo nela. É muito difícil ter alguém em casa que não escuta porque você para de poder contar com a pessoa.
Ela não vai ouvir a campainha, não vai ouvir o interfone, não vai ouvir
o telefone, não vai te ouvir chamando lá da cozinha. Vejam bem, eu
estou falando especificamente das pessoas que podem usar a tecnologia
para voltar ao mundo dos sons.
Tive esse comportamento horroroso durante muitos anos.
Preferi sofrer em sala de aula, deixar de ouvir música, deixar de fazer
intercâmbio, abandonar o inglês e várias outras coisas que me
prejudicaram apenas porque eu não queria lidar com a minha deficiência auditiva que tinha solução!
Nunca me prestei a ajudar em casa ouvindo um interfone, uma porta, um
chamado, um telefone simplesmente porque, lá do topo do meu egoísmo e
arrogância, eu pensava: “Eles que se virem, eles ouvem!“. Sabe
aquele comportamento de PCD revoltado que quer se vingar do mundo? Pois
é. De 2009 a 2013, quando já estava nas últimas com surdez bilateral
profunda e progressiva e meus AASI já não eram capazes de me ajudar como
eu precisava é que fui entender a dimensão da falta que eles fizeram antes disso na minha vida.
Se eu tivesse uma filha ou neta agindo
como eu agia – ainda mais hoje com toda essa tecnologia maravilhosa
disponível – eu não seria tolerante e compreensiva como minha mãe e avó
foram comigo. Iria tocar o terror para que minha filha não se
prejudicasse por imaturidade. Quando penso nisso lembro do esforço
tremendo que ambas faziam para não machucar os meus sentimentos e para
aceitar a minha arrogância do ‘não vou usar porque não quero‘. Nossasenhoradoaparelhoauditivo, não sei mesmo como elas me aguentaram.
Esse post parece agressivo? Pode ser,
mas a realidade não é suave; a realidade além de ser agressiva também
nos obriga a lidar com as consequências dos nossos atos. Virar as costas
para os fatos óbvios e se trancar no quarto enquanto curte uma fossa
não vai resolver nada. Buscar reabilitação auditiva vai te ajudar de modo imenso! Posso
falar porque tenho experiência, né! Imaginem como me sinto sendo aquela
que sempre ouviu super mal ou não ouvia nada e hoje, aos 33 anos,
passou a ouvir muito bem, obrigada. É surreal!
Qual a minha intenção? Fazer com que
cada pessoa que leia esse post, e que tem na família alguém que se
recusa a lidar com a surdez, tenha a sabedoria necessária para pegar a
mesma de jeito e dizer: “Vem cá, vamos conversar. O certo é enfrentar os problemas, não se esconder deles!”
Gente, é tão simples. Quando estamos falando de alguém que pode colocar
um AASI e ouvir mais e melhor, ganhar independência e ajudar a família e
a si mesmo, cadê o mistério?
Os idosos são osso duro de roer pois são de uma geração que aprendeu que a surdez é ‘algo normal da idade‘.
Só que não! Normal é ouvir, participar das conversas, zelar pela
própria segurança, não ser passado para trás, ir ao cinema, viajar.
Disse para a minha vó: ‘se você aceitar a perda auditiva sem fazer nada, sua audição vai embora e sua cabeça vai junto‘. Onde é que está escrito que os idosos devem se resignar com a perda auditiva?
Na verdade acho assustador chegar à velhice sem ouvir pois é a época em
que estaremos mais frágeis e sozinhos. Tenho grande admiração pelas
pessoas de 80 e 90 anos que partem para o implante coclear porque querem
ouvir, querem fazer parte do mundo e da vida como sempre fizeram. Se
não tivéssemos recursos ainda vá lá, mas hoje a tecnologia ajuda a
grande maioria dos casos de surdez.
Surdo e teimoso? Pare, por favor. Faça esse bem a si e aos que te amam.
http://cronicasdasurdez.com/surdo-e-teimoso-pare-por-favor/
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