RIO - Quando o guarda municipal Gilson Mario Marinho quer falar seu nome sem emitir um som, ele arregala um olho, levanta a mão direita à altura da face e faz um movimento arqueado com o dedo indicador. O aceno, criado por um professor de Libras (Língua Brasileira de Sinais), faz uma referência à sua sobrancelha, farta como a de um vilão de filme mexicano.
— Eu sou o Sobrancelha Levantada. É engraçado, parece nome de índio — diverte-se. — Tem gente que, quando é “batizada”, não gosta, barganha por um nome novo. Para mim está bom.
Mesmo sem ter qualquer deficiência auditiva, Marinho, de 45 anos, estuda há um ano no Ines, o Instituto Nacional de Educação de Surdos. Construído em 1856, por iniciativa de Dom Pedro II, o centro, em Laranjeiras, é o primeiro e maior do tipo na América Latina. Tem alunos do ensino fundamental à pós-graduação.
Mas ainda que voltado primariamente à instrução de surdos, o Ines não é excludente. Oferece, desde 2000, uma formação de Libras em cinco semestres para ouvintes. Neste ano, as 672 vagas foram preenchidas em oito minutos, pela internet (a procura dobrou nos últimos três anos). Pais de alunos surdos têm prioridade. Depois, abre-se posto a funcionários públicos e de empresas privadas. Vem, por fim, o público geral. O curso, de duas aulas semanais, é gratuito.
Integrante do grupamento de rondas escolares — responsável por vistoriar escolas da rede municipal —, Marinho decidiu estudar Libras depois de se deparar com alguns alunos surdos.
— Eu me sentia incomodado de não conseguir me comunicar — lembra-se. — Além disso, sei de casos de surdos que foram presos porque o agente de segurança desconhecia a linguagem de sinais, e acabou se irritando.
Ele estuda às terças e quintas-feiras, depois do expediente. Com dois semestres de aula, aprendeu a falar “cachorro” (o sinal imita um focinho), “gato” (um bigode), “mãe” (um beijo na mão, como quem pede a benção). Descobriu que, assim como em português falado, o “sotaque” varia de acordo com a região (o gesto para “elefante” difere se feito no Rio ou em Minas Gerais). Tirou férias neste mês, para comparecer ao 11º Congresso Internacional de Educação de Surdos, que terminou ontem, em Copacabana. Se diz fascinado com a língua:
— Libras não é português, que segue padrões preestabelecidos. Para contar que comprou um carro novo, você pode falar “carro novo comprei” ou “novo comprei carro”. E os verbos são descartáveis. Não preciso dizer “eu falo Libras”. “Eu Libras” resolve.
Usou o aprendizado em uma ocasião.
— Foi num posto de saúde. Eu tinha levado uma aluna, e acabei vendo que havia um casal de surdos por lá. O homem precisava ir à farmácia, mas não conseguia pronunciar as palavras — rememora. — Dá para ver o contentamento da pessoa quando ela percebe que você também fala Libras.
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Embora antiga, a Libras só veio a ser reconhecida oficialmente em 2005, devido ao decreto federal 5626 (hoje é, além do português, o único idioma oficial do país). Desde então, houve um aumento de políticas de inclusão. A disciplina tornou-se mandatória no curso de Fonoaudiologia; instituições federais de ensino foram obrigadas a contar com tradutores (ainda que nem sempre cumpram a meta); o Ines passou a dispor de um curso universitário.
Neste ano, a instituição criou um canal de TV pela internet e produziu um desenho animado inteiro em Libras. O número de alunos disparou.
Técnico em enfermagem do Instituto Nacional de Câncer (Inca), Mario Sérgio de Souza, de 36 anos, cursa o primeiro semestre. A vontade de aprender Libras foi motivada pelo encontro com um paciente surdo, três anos atrás.
— Era uma criança de uns 7 anos. Nos comunicávamos por desenho — conta. — O menino tinha que se desdobrar para dizer o que sentia. Não dá para ter um paciente sem se comunicar com ele.
Conseguiu se matricular há dois meses, na segunda tentativa. Devido ao pequeno topete, foi “batizado” com um movimento da mão sobre a testa (o apelido em Libras é necessário para que as pessoas não tenham que soletrar letra por letra de cada nome). Convenceu um amigo do trabalho a se matricular, no próximo ano.
— No meu setor ninguém fala Libras. E no hospital também não conheço ninguém. Acho um erro — vaticina. — Deveriam ensinar Libras em escolas, como fazem com inglês e espanhol.
Supervisora da 5ª Promotoria do Idoso e da Pessoa com Deficiência, no Centro, Ana Paula dos Santos, de 35 anos, decidiu aprender Libras depois que passou a dividir a sala com o estagiário Jocsã Soares Gomes, 19 anos mais novo. Surdo desde o nascimento, Jocsã promoveu uma pequena revolução na repartição: também convenceu a recepcionista Sâmia Vieira e o assessor jurídico Marcio Luiz Ribeiro a se aventurarem na língua. De quebra, inventou sinais para cada um.
— No primeiro dia chamamos um intérprete de Libras da prefeitura, só para apresentar o trabalho a ele — lembra Ana Paula. — Depois, nos comunicamos por escrito.
Passados alguns meses, o grupo resolveu se matricular no Ines.
— Com a chegada do Jocsã, comecei a entrar em sites para aprender algumas palavras — conta Ribeiro, de 32 anos. — Descobri como se diz “bom dia”, “boa noite”, sem contar as bobeiras, como “tá paquerando” e “amo você”.
Diz que o interesse na nova língua independe da presença do estagiário:
— É uma linguagem bonita, teatral. E muita gente desse universo não consegue nos acessar. Um americano no Brasil pode aprender português. O surdo não tem essa opção.
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