“Olá Paula,
Acabei de ler seu livro e me identifiquei com quase todas as situações relatadas por você
e pelos demais leitores. Incrível como a gente aprende sobre si mesmo a
cada dia que passa, basta estarmos abertos para o mundo. Após a leitura
me deu vontade de contar minha história, quem sabe também não consigo
ajudar alguém, não é mesmo? Sou paulista, tenho 52 anos e moro na Bahia
há 25 anos. Aqui fiz minha formação em serviço social e
coincidentemente, concurso para a Secretaria da Fazenda, onde exerço o cargo de agente de tributos, acho que é equivalente a seu Técnico de Tesouro ai no Sul.
Tomei consciência de minha perda auditiva no trabalho.
Um dia estava em minha mesa concentradíssima num relatório quando uma
estagiária sentou-se à minha frente e perguntou se eu podia conversar
com ela em particular, parei o que estava fazendo e fomos para uma
salinha de reunião conversar. Ela começou dizendo que precisava de um feedback
(foi assim mesmo, estagiária de pedagogia usando termos técnicos)
porque estava sentindo que eu não valorizava o trabalho dela, pois toda vez que ela falava comigo eu não respondia
e às vezes ela se sentia excluída e humilhada na frente dos outros
funcionários e queria saber se o problema era com ela ou se era por ela
ser estagiária. Fiquei estupefata com a situação, nunca em minha vida
pensei que ouviria esse tipo de reclamação ou comentário de alguém,
justo eu que me preocupava tanto em saber como estava o “clima” de minha
equipe. Disse-lhe que devia ser impressão dela, mas ela continuava a
afirmar que eu não atendia quando ela me chamava. Eu pedi desculpas e
prometi que iria prestar mais atenção para que isso não acontecesse
novamente, que ela não se preocupasse porque era uma ótima estagiária e
seria uma grande profissional (feedback dado).
Daí que quem ficou preocupada fui eu. Naquela tarde chamei meus dois
coordenadores para conversar no final do expediente, contei o caso e
eles deram risada dizendo, todo mundo sabe que você deve ser surda, ela é que não te conhece e achou estranho. Fiquei irada. Como assim todo mundo sabe que eu sou surda? E ninguém me conta? Ficaram
relembrando os casos em que eu não atendia o telefone, não respondia as
pessoas que estavam em mesas mais distantes, e tantas outras vezes em
que desistiam de falar comigo e passavam email para poder garantir que
eu havia recebido o recado. Cheguei em casa e comentei com meu marido, e
ele falou, grande novidade, você não entende nada do que a gente fala e ainda fica perguntando o que? hã? o que foi que você disse?
Marquei um otorrino na mesma semana, na consulta ele me virou do
avesso, mandou que eu fizesse um mundo de exames e a única coisa errada
que encontrou foi um desvio no septo para o que ele queria fazer uma
cirurgia. Perguntei se isso ia resolver o problema do ouvido, como ele
disse que não, mandei esquecer. Não foi detectado nenhum problema
orgânico nem na estrutura do ouvido, não tive nenhum trauma, não caí nem
bati a cabeça, nunca corri atrás do trio elétrico, então ele ficou sem
poder fechar o diagnóstico, disse-me apenas que deveria ser um problema
genético ou alguma infecção que eu tinha tido recentemente, e me
encaminhou para uma fono para fazer uma audiometria.
Na consulta com a fono foi detectado uma perda auditiva leve a moderada de 40%, simétrica nos dois ouvidos,
compatível com uma pessoa de 80 anos, e eu tinha 40 à época (em 2001) ,
com indicação para usar aparelhos auditivos nos dois ouvidos.
Perguntei, tem cura? Ela me respondeu que não, mas que os aparelhos
poderiam me ajudar a ouvir melhor e com sorte e insistência estagnar a
perda, garantindo melhor qualidade de vida. Saí dali convencida de que tinha de usar os aparelhos e fui procurar onde comprar.
A única referência que eu tinha era de um senhor colega do trabalho
que usava aparelhos, perguntei onde ele tinha comprado e fui na mesma
clínica conhecer. Quando a fono colocou um aparelho de teste para ver
como me sentia foi um choque, comecei a ouvir meu marido falando de
costas para mim, o som do teclado, ela abriu a porta e pude ouvir as
pessoas conversando na recepção. Eu não tinha noção do quanto eu não ouvia, do quanto eu estava isolada dentro de minha cabeça, percebi inclusive que minhas dores de cabeça eram na realidade esse zumbido infernal que não me largava nenhum minuto!
Meu primeiro aparelho foi um par intra-canal, comprei sem dó nem
piedade pois me custaram à época R$3.800,00 cada um, quinze dias depois
eles chegaram e comecei a usar imediatamente. Foi uma festa lá na seção,
as pessoas ficavam me testando para ver se eu estava ouvindo mesmo.
Uma colega quis pegar na mão para ver como era, como funcionava, e
brincavam dizendo que agora eu era uma pessoa “antenada”, por causa da
anteninha que os aparelhos tinham. Enfim, eles se integraram
inteiramente à minha vida e eu a eles, aliás fiquei dependente deles,
não saia de casa sem. Esse amor todo durou uns dois anos, a partir dai
comecei a sentir muita dor de cabeça quando usava os aparelhos e um
pouco de tontura. Voltei na fono e ela me disse que meu cérebro já
estava acostumado com os aparelhos e que era preciso mudar para outro
tipo mais novo. Como assim mudar? E a “fortuna” que eu havia pago por
aquele par? Saí indignada da clínica, coloquei os aparelhos na caixa e
guardei na gaveta. Fiquei uns três anos sem usar, mas aos poucos fui
voltando àquela situação de “o que você disse”? Hã? Criou-se em mim uma resistência em aceitar que eu tinha perda auditiva e precisava usar aparelhos,
me perguntava por que eu? Acho que o que mais me incomodava é que eu
fazia parte do coral da empresa e era primeira soprano, não usava os
aparelhos nos ensaios mas mesmo assim percebia qualquer pessoa que
desafinasse no coro, os colegas se orientavam pela minha afinação, a
maestrina me usava como referência nos ensaios e fazia solos nas
apresentações. Como é que eu podia ser surda?
Fui a outro otorrino, fiz novamente todos os exames e ele também não
conseguiu identificar a causa nem fechou o diagnóstico, mas me disse que
como eu havia usado os aparelhos por um tempo meu cérebro havia
reaprendido a ouvir e identificar a fala, que minha perda era específica
para entender a conversação e que não tinha dificuldade com a música
porque é um som puro. A conversação é modulada e como eu tenho os graves
preservados e minha perda é na região dos agudos, eu entendia só metade
dos fonemas, e que existiam aparelhos com tecnologia para atender as
minhas necessidades. Enchi-me de coragem e fui procurar novos aparelhos.
Dessa vez comprei o modelo retro-auricular que uso com olivas abertas,
isto é, ouço os sons graves naturalmente e os aparelhos traduzem os
agudos dentro do canal auditivo, o zumbido foi embora e estou feliz da vida!
Agora cinco anos depois da mudança de aparelhos estou pesquisando
para a compra de um novo par. Com o uso diário e intenso (uso das 07:00h
às 22:00h) percebi quais são minhas reais deficiências e dificuldades
como atender o telefone por exemplo, entender pessoas que falam atrás de
mim, falam comendo (ninguém merece!), falam rápido, passam falando sem
me direcionar a palavra ou então resolvem me ajudar e falam baixinho em
meu ouvido (odeio isso!). Pretendo comprar novos aparelhos com
tecnologia Bluetooth ou Wifi para me conectar ao celular, aproveito e
compro um smarphone novo, kkk, e vou viver a vida, porque eu mereço,
aliás todos nós merecemos!
Nunca me senti deficiente, nem nunca me considerei surda e
coitadinha, nunca também havia prestado atenção sobre o fato de que
existem vários tipos e amplitudes de surdez e foi através de seu
blog que me liguei no quanto vivi presa apenas em meus problemas, perdi
tempo e oportunidades de descobrir pessoas e dicas de como superar as
dificuldades que tenho passado nesses 13 anos desde que aquela
estagiária chamou minha atenção para o fato de eu não ouvi-la. Tenho muitas outras histórias para contar, mas enfim, vivendo e aprendendo!
Marta Gaino“
http://cronicasdasurdez.com/soprano-funcionaria-publica-e-surda-oralizada/?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3A+CronicasSurdez+%28Cr%C3%B4nicas+da+Surdez%29
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