Surdez e assaltos
Vocês lembram do Paulo Sugai, do post sobre o jogador de futebol americano com deficiência auditiva? Pois o Paulinho é um amigo muito querido, e li algo que ele escreveu no Facebook contando sobre um assalto que vivenciou e achei que seria interessante falar sobre isso aqui.
“Para quem não me conhece, meu nome é Paulo, tenho 23 anos e sou surdo profundo bilateral, usuário de AASI e oralizado. Trabalho como analista jurídico
e, além de jogador (me recuperando de lesão no ligamento cruzado
anterior/LCA do joelho esquerdo), também sou gerente financeiro do Brasília V8 FA, equipe de futebol americano do Distrito Federal que compete no Torneio Touchdown, campeonato de abrangência nacional. Pois bem, tínhamos um jogo agendado contra o Minas Locomotiva pela terceira rodada do campeonato, a ser realizado em Belo Horizonte
no dia 20/07 (sábado), às 14h. Para tanto, decidimos fretar um ônibus
de 2 andares e com capacidade para 52 pessoas. Saímos de Brasília por
volta das 23h20 e tudo estava dentro dos conformes. Os jogadores
receberam o plano de jogo e as novas camisas, tudo em um ambiente de
extrema descontração e animação para o evento do dia seguinte. Fiquei no
andar de baixo do ônibus, junto com a Diretoria Executiva da equipe e
alguns jogadores. Mais especificamente, na última fileira, logo atrás da
parede que separava o bagageiro do primeiro andar. Após uma conversa
super descontraída com os meus amigos, decidi me preparar para dormir,
visto que o jogo seria bem cansativo – já tinha passado de uma da manhã.
Tirei os aparelhos auditivos, coloquei na caixinha e
guardei na minha mochila, que estava logo atrás do meu banco, entre a
parede e a cadeira. A partir desse momento, o silêncio se tornou predominante.
Foi então, ao olhar pela janela, que percebi que o ônibus estava em uma
estrada extremamente escura. Inclusive comentei isso com o Toru, que
estava ao banco do lado. Não havia nenhuma iluminação (somente a luz da
Lua) e só isso já me fez ficar tenso. Desde criança, tenho uma
alta sensibilidade quando se trata de permanecer em locais escuros e que
inviabilizam a comunicação via leitura labial com outras pessoas.
Pelo menos o ônibus estava com as luzes acesas… Como eu estava sem
AASI, não pude ouvir os barulhos que se seguiram logo após. Segundo
relatos do pessoal, foram cerca de 10 tiros que atingiram o motor e a parte superior do ônibus
– um deles, inclusive, passou a 40 cm do Peixe, que estava reclinado na
cadeira no instante. Se não fosse o Shaolin e o Caverna (jogadores do
time), o pessoal de baixo não teria a mínima idéia do que estava
acontecendo lá em cima. Foram eles que nos alertaram do perigo iminente e
a minha reação inicial foi achar que tudo era uma brincadeira de mau
gosto. Dito e feito, as luzes do ônibus se apagaram e logo quatro bandidos entraram (três para o segundo andar e um para o primeiro andar), todos usando balaclavas. Todo mundo costuma falar que eu sou uma pessoa extremamente racional, mas naquela hora, entrei em pânico. Todos se abaixaram, uns empilhados em cima do outro, tentando manter a calma. Foi puro terror,
eu procurava entender o que estava acontecendo, tudo estava escuro e
quando percebi que se tratava de um assalto, não hesitei em repassar meu
relógio e o dinheiro escondido no meu bolso. Para completar, o
pânico aumentou quando percebi que se o bandido (que estava visivelmente
alterado) viesse falar comigo, eu não conseguiria entender
absolutamente NADA, visto que todas as vias de comunicação foram
cortadas. Leitura labial? Impossível. AASI? Guardados na mala. Libras?
Não sei e com toda a certeza do mundo, o ladrão também não. Graças ao bom Senhor não aconteceu nada de mais grave, fora algumas coronhadas
sofridas por quatro jogadores no andar de uma e ferimentos de
estilhaços de vidros. Todos estão bem e a polícia está tomando as
devidas providências. No entanto… Depois desse episódio, fiquei refletindo bastante sobre a nossa vulnerabilidade nessas horas.
Como estabelecer um canal de comunicação com alguém que não está
interessado na nossa integridade física ou em nossas necessidades? É
algo a se pensar.”
Obrigada por dividir essa história conosco, Paulinho.
Fiquei de queixo caído pensando nisso. Não imagino o que faria numa situação dessas. Nunca fui assaltada e tenho verdadeiro pavor de ficar sozinha em casa
ou ficar sozinha em qualquer lugar por causa disso. Basta o cachorro
latir sem motivo aparente que já me dá um treco imaginando a cena de um
marginal armado entrando e me pegando pelo pescoço. Numa hora dessas, imagina se o ladrão vai acreditar que a gente não ouve. E ainda é capaz de nos arrancar os aparelhos, atirar no chão e pisar em cima. A surdez nos coloca em situações de vulnerabilidade total,
como essa descrita no post. Por isso sempre digo que não devemos sair
por aí contando para estranhos sobre o fato de que não ouvimos, porque a
gente não faz idéia de quem vai usar essa informação para o mal. Assaltos e incêndios me fazem tremer mais que vara verde, por Deus. Espero nunca passar por algo assim.
http://cronicasdasurdez.com/
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