Semana passada reencontrei minha terapeuta
após alguns meses sem vê-la. A primeira coisa que disse quando me viu
foi que tinha lido o segundo livro e agora me entendia melhor. E fez um
comentário que me deixou bem pensativa:
“Antes do IC, você
tinha o poder de escolher quem entraria no seu mundo silencioso, quando
as pessoas entrariam e por quanto tempo poderiam permanecer nele.
Afinal, para que isso acontecesse, você precisava dar atenção total para
a pessoa. Se virasse para o lado ou saísse do recinto, a conexão
acabava. Hoje, não. Todos podem invadir o seu mundo o tempo inteiro depois do IC:
te ligando, gritando para você de outro cômodo, querendo conversar
porque sabem que você está ouvindo, cantarolando uma música. Você perdeu
esse poder e agora precisa aprender a não ser mais tão auto-centrada!”
O som não pede permissão para entrar.
O som te arranca da tua zona de conforto silenciosa à força, sem dar a
mínima importância para o fato de estar ferindo – ou não! – os teus
sentimentos. Foi exatamente isso o que aconteceu comigo, pessoinha mais
do que acostumada ao silêncio e mergulhada num mundo próprio no qual o som não tinha acesso. Confesso que nunca tinha parado para pensar sob a perspectiva apresentada pela Silvia, minha terapeuta.
Enquanto escrevo esse post estou sozinha numa sala da SONORA. Pensando bem, não estou sozinha: o som invade o ambiente com o tic-tac alto e incessante de um relógio de parede. Mais o barulho do ar condicionado. E das pessoas no corredor do andar. O insight que tenho é de que a solidão acabou para mim. Ela só existe quando estou sem implante coclear, ou seja, quando estou dormindo ou tomando banho.
Voltar a ouvir não é – como
muitos imaginam que seja – simplesmente ser capaz de ouvir pássaros, de
entender vozes, de apreciar música, de falar no telefone. Voltar a
ouvir é também voltar a fazer parte do mundo de maneira ativa e passiva.
Ativa pois você deixa de precisar dos outros para inúmeras coisas e
passa a fazê-las você mesmo; passiva pois o som é invasivo de um jeito
que só voltando a ouvir para conseguir compreender.
Voltar a ouvir me fez reavaliar todas as escolhas que fiz durante meus 31 anos de perda auditiva progressiva. É dificílimo lidar diariamente com as escolhas erradas no tocante à minha vida profissional.
Voltar a ouvir é voltar
a ser estimulado de modos que você esqueceu que existiam. Ler um livro e
ouvir o barulho do seu dedo virando a página, admirar um pôr-do-sol
ouvindo o vento e o som dos seus próprios passos.
Voltar a ouvir é
aprender a reviver partes suas que estavam completamente adormecidas, é
ter uma sensibilidade incrível de volta. É se tornar uma pessoa que
busca de modo constante sons e significados que para os outros são
banais, para não dizer patéticos. A campainha tocou? Enquanto você pensa
“PQP, ouvi a campainha tocar!” os outros pensam “êta barulho chato“.
Voltar a ouvir é ter
que fazer um esforço constante para sair do seu próprio mundo, para
aceitar de bom grado a presença – e a respiração, a fala, os suspiros,
os gritos – do outro. Voltar a ouvir é perceber 100% a
presença alheia e suas nuances e, também, ter que lidar com o modo como a
sua presença afeta as outras pessoas. Voltar a ouvir é aprender a dar em vez de apenas receber.
O silêncio me dava uma certa paz:
eu detinha o poder de determinar minhas interações e também os meus
desafios, tão limitados pela falta de som. Mas, no fim das contas, ele me dava mais desatino e tristeza do que qualquer outra coisa, pois eu queria desesperadamente fazer parte do mundo sonoro.
A surdez é egoísta, a audição é generosa. E eu, dia após dia, venho tentando me desapegar do egoísmo e da solidão que a surdez impregnou na minha alma. Sem implante, sou EU. Com implante, sou EU NO MUNDO. Um ano e oito meses depois, ainda estou construindo a ponte entre esses dois eus. Voltar a ouvir é um trabalho eterno que vem me transformando num ser humano melhor. O silêncio é estático, o som é dinâmico. E a nossa existência é feita de um dinamismo incessante, ainda bem.
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