As perdas que a perda auditiva causa nos relacionamentos
Costumo dizer que a surdez é uma caminhada muito solitária para quem a possui, mas ela é também dificílima para os que são cônjuges/parentes/amigos/colegas de pessoas que não ouvem. Comecei a perceber isso mais nitidamente depois que voltei a ouvir de verdade
com o implante coclear e me deparei com a minha avó de 78 anos que
começou a perder um pouco de audição – embora negue o fato e diga que
isso é bobagem. Lembro de como eu exigia uma paciência sofrida de todos
ao meu redor, e digo sofrida pois quem tem deficiência auditiva está tão centrado na própria dor que sequer percebe a dor que ela também causa naqueles que estão por perto.
Por mais que você ame profundamente uma pessoa, é frustrante e
cansativo precisar repetir a mesma frase dez vezes, precisar falar
sempre muito alto ou chamar a pessoa mil vezes até ela notar que está
sendo chamada. Ontem atendi um senhor que usava aparelhos auditivos no
trabalho, e por mais que eu repetisse as frases ou berrasse, ele não
entendia nada do que eu falava. Imaginem o que isso significa
para os nossos pais, irmãos, cônjuges, amigos e colegas, que precisam
conviver com isso de modo intenso. Tira as forças de qualquer
um, com certeza. A pessoa com DA vai se fechando numa bolha de solidão
porque não conseguir se comunicar, especialmente para quem conseguia e
perdeu essa capacidade, é desesperador. A gente começa a sentir muita vergonha.
Começa a sentir o peso que coloca nas costas daqueles que amamos, já
que eles não querem nos magoar ou ferir nossos sentimentos e ao mesmo
tempo precisam nos ajudar de formas antes inimagináveis. Junto com a
vergonha vem a raiva, sempre despejada nos mais próximos. Depois da raiva, começa o isolamento: porque tentar participar de interações sociais se elas só trazem tristeza e frustração? No fim das contas a surdez não afeta apenas a pessoa que convive com ela, afeta com intensidade toda a família.
Existem muitos relacionamentos que não são afetados pelas sutilezas da deficiência auditiva pois estão permeados por respeito e maturidade, e quando isso existe, existe também diálogo. Com diálogo, tudo se resolve. Porém, estamos carecas de saber que a DA envolve nuances psicológicas nada fáceis de lidar: negação, depressão, isolamento, irritação constante, etc. Vamos dar um exemplo bem clássico: a pessoa que se recusa a usar aparelho auditivo ou qualquer recurso tecnológico sabendo que precisa disso.
Ela está no seu direito? Está. Ela afeta a vida das pessoas ao seu
redor fazendo isso? Afeta e muito, de modo negativo. Como escrevi no
livro e não canso de repetir, para alguém poder abrir a boca e afirmar
categoricamente que não se adapta a um AASI essa pessoa precisa ter
tentado TUDO. Eu mesma levei anos, dezenas de moldes, várias
programações, fonoaudiólogas e aparelhos diferentes até poder dizer que
estava de fato feliz com os meus. Não é fácil. O que
acontece é que a grande maioria das pessoas opta por desistir logo no
início da jornada. Machuca? Sim. Irrita? Com certeza. Cansa o cérebro?
Sem dúvida alguma. Mas é bom parar e refletir um pouco: a sua teimosia em não se ajudar é justa com as pessoas que vivem com você?
Vamos aos exemplos práticos. Se um indivíduo, ao usar AASI, é capaz de
ouvir a campainha, o interfone, o telefone, pessoas chamando ou batendo
na porta – mas não usa o AASI simplesmente porque ‘não está a fim’
– ele não está sendo injusto e sobrecarregando as pessoas da sua
família? Na minha opinião, está. Eu mesma já fiz muito isso e hoje
percebo com clareza como fui egoísta. Afinal, se posso ser útil ou ajudar de alguma maneira ouvindo, mesmo que pouco, não fazer isso só porque ‘não estou a fim’ ou porque prefiro ficar trancada na minha depressão é egoísmo puro e simples.
Ou, pior, infantilidade. E vamos levar em conta essa nova geração de
crianças lindas que usa seus AASI’s e implantes desde bebê sem reclamar.
São uma verdadeira inspiração!
Esse assunto me faz lembrar de uma viagem à Côte D’Azur, na França. Mais especificamente, a cidade de Nice, reduto de aposentados e velhinhos.
Aqui no Brasil é muito comum que pessoas com 60 anos comecem não só a
se sentir, mas a agir como idosos incapazes. Lá, pelo contrário, fiquei
maravilhada de ver turmas de idosos de 80 anos para cima indo sozinhos
ao supermercado com seus andadores. Alguns puxavam o carrinho que
carregava seus tubos de oxigênio. Outros comandavam suas próprias
cadeiras de rodas bem faceiros em passeios pela praia. Quase todos usavam seus aparelhos auditivos sem constrangimento algum.
Resumo da história: as limitações físicas, sensoriais e da idade não
eram impedimento para que eles dessem um jeito de ser o mais
independentes possível. Aquilo me marcou. Na época, 2011, eu usava meus
aparelhos mas não sem reclamar ‘machucam, irritam, não estou com vontade de usar hoje’. Aí parei pra pensar: qual é a minha desculpa para não fazer esforço para ter o máximo de independência que puder?
Nenhuma. Se um idoso de 80 e tantos anos usa seus AASI e faz o que pode
para não ser um fardo para a própria família, que diabos um
jovem/adulto pode inventar para não fazer o mesmo?
Quando um deficiente auditivo
que tem indicação de uso de AASI/IC/etc e não usa porque ‘não quer’ ou
por preguiça de fazer o esforço necessário para a adaptação, ele precisa estar consciente do quanto está prejudicando a dinâmica dos seus relacionamentos íntimos – o
quanto prejudica a própria saúde é assunto para um post escrito por um
otorrinolaringologista, diga-se. É preciso pensar em quantos milhares de pessoas gostariam de poder usar a tecnologia a seu favor para ouvir mas não podem (por motivos de saúde ou financeiros). E você aí, negando a si mesmo qualidade de vida.
E digo isso como alguém que já fez a mesma coisa. Chega uma hora em que
encarar essa questão como adulto, de modo crítico, nos faz sentir vergonha do nosso próprio comportamento.
Negação, depressão e isolamento não forçado têm limite, penso eu.
Passar a vida empacado nisso é uma perda de tempo sem precedentes. Acho
bem importante ter o senso crítico necessário para entender que nós
mesmos acabamos minando nossos relacionamentos mais importantes porque
não queremos nos ajudar. Auto-comiseração e pena de si mesmo realmente não ajudam ninguém a ouvir melhor…
Pensei em algumas problemáticas bem comuns, me digam se concordam comigo e complementem aquelas que esqueci, por favor.
Irmãos
-
O irmão ouvinte acaba quase sempre deixado um pouco de lado, afinal, ele ouve
-
O irmão ouvinte acaba tomando para si a responsabilidade proteger o irmão surdo
-
Os pais colocam no filho ouvinte uma carga de responsabilidade exagerada
- O irmão ouvinte acaba sendo também melhor amigo, intérprete, babá, protetor e não dá atenção à sua própria vida
- O irmão que não ouve acaba se acomodando no papel de ser aquele que precisa de ajuda e não faz grande esforço para interagir sozinho com outras pessoas
Pais
-
Proteção excessiva com o filho surdo
-
Tom de voz fica mais alto e nem percebem
- Agressividade desnecessária com estranhos que falam sobre a deficiência do filho
- Falta de cuidado com a própria vida por viverem em função do filho que não escuta
- Casal pode se distanciar por ficar tão centrado no problema do filho
- Filhos com DA podem criar uma relação de eterna dependência dos pais
Cônjuges
- Quando o cônjuge que não ouve finge que o problema não existe, é um fardo muito pesado para o cônjuge ouvinte
- Comunicação do casal fica comprometida
- Vida social do casal começa a desaparecer
- Vida sexual é afetada (retração/vergonha do cônjuge que não ouve; fazer sexo usando AASI e IC não é tarefa das mais simples, é preciso jogo de cintura e bom humor)
- Marido/esposa de repente se vê na condição de pai/mãe daquele que não ouve
- Cônjuge ouvinte vive angustiado por medo das situações perigosas que o cônjuge surdo pode enfrentar no dia-a-dia
- Intimidade prejudicada: acabam os sussurros ao pé do ouvido, acaba a espontaneidade nas declarações de amor
- Frustrações são despejadas sem dó nem piedade naquele que ouve
- Os amigos e colegas relatam para o ouvinte as situações bizarras/vergonhosas na qual o cônjuge surdo se envolve – como conversar com ele sobre isso?
- Quando a pessoa se nega a usar AASI/IC por teimosia está colocando responsabilidade extra nos ombros daquele que ouve
- Eterno ‘pisar em ovos’ quando a pessoa que não ouve vive em negação
Colegas de trabalho
- O colega que não ouve às vezes acaba sendo ‘poupado’
- Colegas ouvintes precisam estar sempre ‘salvando’ o que não ouve
- DA que deveria usar AASI e não usa por teimosia no trabalho está prejudicando suas perspectivas profissionais
- Quando é uma empresa que utiliza demais o telefone o DA fica eternamente dependente dos favores de algum colega
- Chefia percebe nitidamente se o DA está empenhado em se adaptar à sua nova condição ou se está acomodado no papel de coitadinho
- O DA que usa AASI mas morre de vergonha do fato causa constrangimento no local de trabalho – esse fato deve ser tratado com naturalidade pelo próprio DA
Amigos
- Isolamento
- Falta de interação = piora significativa na qualidade das relações de amizade
- Os amigos não sabem como ajudar pois o DA não explica – as pessoas não são videntes ou sensitivas
- Quando o DA não conta que não ouve, muitas vezes os amigos acham que ele se tornou um mal educado/esnobe do dia para a noite
- Cuidar para não transformar um amigo ouvinte em bengala emocional, mesmo sem a intenção de fazer isso
Filhos
- Esperar que os filhos se tornem pais dos próprios pais
- Sem perceber, ‘escravizar’ uma criança/adolescente que deve ter vida própria
- Incutir culpa constante nos filhos, eles não têm culpa se você não ouve e não devem ser massacrados por isso
- Esperar ajuda e presençã constante dos filhos
- O que você ensina para seu filho quando mostra a ele que sente vergonha da sua própria deficiência?
A salvação para qualquer uma das opções acima diz respeito a duas coisas: adaptação e muito diálogo. Mais do que querer ser um membro produtivo da sociedade, a pessoa com deficiência auditiva deve querer ser um membro produtivo da sua própria família.
As perdas que a DA causa nos relacionamentos podem ser irreversíveis se
os envolvidos fingem que nada está acontecendo. Existe uma diferença
brutal entre efetivamente precisar de ajuda e não se esforçar para fazer as coisas sozinho.
Se você pode se comunicar melhor com os seus usando a tecnologia,
porque não fazê-lo? Isso é uma demonstração não só de amor e carinho,
mas de respeito e consideração com aqueles que se importam conosco. Eu
sei (bem) que às vezes nos focamos tanto em como nos sentimos por causa
da surdez que nem paramos para pensar em como aqueles que amamos se
sentem. A função deles não é só ‘aceitar, aguentar e compreender’.
Imaginem a cena: se cada vez que você dizer ‘não estou a fim de usar meu aparelho auditivo’ seus parentes responderem ‘e nós não estamos a fim de repetir as coisas cem vezes’. O mundo, infelizmente, não gira em torno daqueles que não ouvem, lamento informar. A própria palavra acessibilidade diz respeito a dar a uma pessoa as ferramentas necessárias para que ela seja independente, não?
Depois de meses de implante coclear pude compreender
melhor tudo o que causei de ruim aos meus relacionamentos familiares
por causa da minha relutância de encarar a surdez de frente durante
tantos anos. Transformei a família inteira em robôs
condicionados a servir à minha deficiência auditiva sem perceber. Hoje
fico feliz de ver todos voltando a ter o comportamento que sempre
deveriam ter tido se eu tivesse me esforçado mais para ouvir quando
podia usar meus aparelhos auditivos para isso. Ouvindo
artificialmente me tornei uma ‘ouvinte’ que quase não tem paciência com
aqueles que tiveram 32 anos de paciência incondicional comigo.
Por isso, se me permitem, reforço o que já disse: prestem extrema
atenção às perdas que a perda auditiva causa nos nossos relacionamentos quando fingimos que ela não existe.
Esse não é um problema que se varre para debaixo do tapete pois ele não
desaparece sozinho. Tenha com os outros o respeito que gostaria que
eles tivessem com você.
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