A saga de um surdo que não é mudo
14/06/2016
‘Estamos numa aula de inglês em curso patrocinado pela antiga Companhia Vale do Rio Doce, idos de 1975,
na Avenida Getúlio Vargas, em Belo Horizonte. Trata-se de um etapa
necessária ao trabalho funcional no Departamento de Comunicação Social. A
professora Laura me pede para ler um texto de duas linhas na língua
anglo-saxônica e me esbarro no pronome “she” (ela), que pronuncio como
se fosse “si” e o certo é “xi”. Laura dá um berro e diz “é xixi,
burro!” Nada mais a fazer, saio de fininho da sala e vou, embalado, a
pé, pela Avenida Afonso Pena acima, em direção ao bairro Anchieta. Lá
toco a campainha em uma casa da Rua Odilon Braga. Porta aberta, me
recebe, já noite, o Tio Godofredo.
Depois de recebido, um copo de água
oferecido pela Tia Santa Nícia, isolamo-nos numa sala. Ele me prega,
carinhosamente mas com firmeza, o sermão de que mais precisei naquele
instante, depois do “burro” cruel e indispensável da professora do
Number One. Obriga-me a pernoitar em sua casa, levantamo-nos cedo no dia
seguinte e partimos para o otorrino Airton Rosemberg, que me crava
outro sermão: “Você é o maior surdo que já entrou aqui na minha
sala! Faz curso superior? Tenta aprender inglês? Ah, você é um herói
também! Como falar se não ouve?” E pronto, em uma semana já estava com dois aparelhos auditivos embutidos numa haste de óculos. E concluí o curso de inglês com os abraços, desculpas e lágrimas da professora Laura não sei de quê.
A partir daquela época, comecei a
recordar os meus anteriores anos de vida. Em criança, adolescente e
jovem não aceitava que me taxassem de surdo de jeito nenhum. Inventava
mil desculpas — “concentrado noutro problema”, “distraído”,
“desleixado”, “desmazelado” etc. — tudo de ruim, menos surdo. Quase
todas as minhas brigas na escola, em idades diferentes, eram pelo motivo
mais besta do mundo: uma resposta aos que me qualificavam de portador
de mouquice. Certa vez, um colega me chamou de “Tiú”. Arrasou-me de vez.
Mais tarde, li aquela história do Geraldo Sebastião Magela Dias, o
humorista do “Ceguinho é a Mãe” e pensei que essa teria sido a melhor
resposta — Tiú é a Mãe! — mas desconhecia a réplica do Ceguinho.
Houve outras passagens incríveis em
minha vida, as quais tentei superar. Certa vez um padre de missões em
minha terra, eu coroinha, com 9 anos de idade, me chamou de tolo aos berros, no altar, hora da missa,
porque não lhe servia vinho em quantidade suficiente à sua gula. Saí da
igreja aos prantos íntimos e engolidos, sem alguém perceber. Na escola,
em todas as etapas, do primário ao superior, tornava-me vítima indefesa
quando não dava para assentar-me na frente e ouvir de perto o
professor. Na terceira série do Ginásio São Francisco, em Conceição do
Mato Dentro, quase levei bomba com notas inconcebíveis para meus
esforços. Na CVRD, em Itabira, já adulto, era caçoado por amigos de formas as mais humilhantes.
Lembro-me de que um vendedor de roupas me procurou no Cauê, onde
trabalhava. Ao perguntar a outros funcionários quem era José Sana,
disseram-lhe o seguinte: “É aquele ali, de óculos, com uma tabuleta
nas mãos. Mas chegue perto dele e grite pra valer porque ele não ouve
nem barulho de trator de esteira”. E ocorreu aquele vexame que,
sempre, tinha que aguentar calado e de cabeça baixa. Um vendedor
desconhecido fez de mim, ao invés de ser humano, uma porteira. Acreditam
que ainda comprei roupas do desaforado?
O constrangimento que fica mais caro para o surdo é ser marginalizado, e isso não tem preço que ressarça.
Reparo bem que, quando as pessoas veem os meus aparelhos auditivos,
preferem conversar com outro qualquer, mandando-me, às vezes, recados como se eu estivesse ausente. Outras facetas machucam ainda mais, como numa reunião, ou confraternização, ou bate-papo, quando adotam um procedimento discriminatório:
falam sempre em voz baixa quando ao sentirem que não devo saber do
assunto tratado ou aos berros (verdade, aos gritos) se precisam que lhes
dê uma resposta. E como empurram, cutucam, dão tapas, pegam e repegam!
Haja paciência! Não me digam que não sou pacífico!
E volto a afirmar que foram, primeiramente, 30 anos de tortura vividos no mais esforçado jeito de comportamento do ser humano.
Minha mãe diz que aprendi a falar as primeiras palavras aos oito meses.
Sinceramente, acho que é “corujice” dela, porque me recordo das mais
tenras épocas quando as professoras diziam a mim: “Você não ouviu nada, né menino? O que foi mesmo que eu acabei de falar?”
Coitado de mim, ouvia as metades e jogava na sorte, inventava frases e
tentava escorregar de todas as maneiras possíveis para não assumir a
surdez.
Sobrevivi, apesar de tudo.
Mesmo na adolescência quando tive, por exemplo, que me sucumbir a um
festival de “coques na cabeça” que um diretor de colégio me aplicou ao
me ver distante da sala de aula, por não ter ouvido o tilintar do sino.
Pensei que tivesse cassado irremediavelmente o resto de minha parca
inteligência com tantas pancadas na cabeça. Contudo, vivi inesquecíveis
momentos nos quais me saí bem por ser mouco. Por exemplo, no meu
casamento, o padre, que era holandês e não falava sequer meia palavra em
português, me permitiu bancar o bobo-alegre. Toda vez que ele se
dirigia a mim e dizia alguma coisa eu gesticulava com um “sim”. Desta
forma, na cerimônia., disse pelo menos uns vinte “sins”. E no fim, deu
tudo certo, já que o sim sempre triunfa nesses momentos.
Depois de três décadas de vida
no mais silencioso mundo da surdez quase total, passei a usar próteses e
encarei o desafio de estudar outros idiomas. Dez meses de
Francês com o Padre Dickens Remi, natural do Haiti, e uma viagem de
trabalho à França, em seguida o enfrentamento de uma pendência quase
infinita, o Inglês, na Wizard. Sempre encorajado pelo jovem professor
Vinícius Lara e pela coordenadora Ester, atingi praticamente o fim do
curso. Mas, o destino emperrou o processo, fazendo-me chegar diante de
duas opções agora: ou vou para o implante coclear, ou desisto do longo caminho já traçado.
Na vida é sempre assim, as encruzilhadas são frequentes e inevitáveis.
Desistir é como fracassar de vez e isso não pode acontecer.
Concluindo, sou grato ao apoio da família e, principalmente, da companheira Marlete,
que balança, é claro, com a minha decisão a esta altura do campeonato,
mas entende meu ponto de vista e o respeita. Os filhos, a mesma
situação, além de tanta gente amiga, não se esquecendo da fonoaudióloga
brasileira, que mora e atua em Londres, Carolina Leal e a ex-surda Paula Pfeifer, gaúcha e hoje morando no Rio de Janeiro.
Finalizando, ainda resta um desabafo e
uma justificativa: Tiú é a mãe! Com um especial e inusitado
agradecimento: obrigado a quem pensou que me humilhava e fez o
contrário, me ajudou! Justificando: ser surdo não é tão simples quanto quem ouve bem pensa. Até mais!’
José Sana (que está pensando seriamente em fazer um implante coclear)
http://cronicasdasurdez.com/saga-de-um-surdo-que-nao-e-mudo/
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