Como se relacionar com uma pessoa que não ouve: a família
Passei minha vida inteira sendo uma pessoa que não escutava, e minha audição foi piorando gradativamente até chegar num nível impraticável – foi aí que corri atrás do implante coclear. Hoje sou capaz de entender as minúcias do que a surdez causou nos meus relacionamentos, especialmente no que diz respeito à minha família,
mas essa capacidade só chegou com meu retorno ao mundo sonoro. Nós
passamos a maior parte do tempo com os nossos familiares, e são eles que aguentam nossas descargas de frustração, agressividade, raiva e depressão.
Vejo muitas pessoas perdidas quando se trata deste assunto. Como ser uma pessoa que ouve e se relacionar com uma pessoa que não ouve? Já que tenho know how suficiente para falar sobre isso, vou compartilhar a minha experiência. Este texto foi escrito pensando em surdos oralizados e em surdos que podem voltar a ouvir através da tecnologia, ok?
Na minha família, minha deficiência auditiva nunca foi a pauta do dia, até porque meu diagnóstico correto só veio aos 16 anos. Acho que quando soubemos da ‘deficiência auditiva bilateral progressiva moderadamente severa‘ em 1997 vivenciamos uma mistura de negação com segue-a-vida-do-jeito-que-dá. Na minha casa éramos eu, minha mãe, minha avó e meu irmão, e nós nunca sentamos e tivemos uma reunião familiar sobre a minha surdez. Se eu pudesse dar um conselho a vocês, diria: façam isso.
Conversem abertamente sobre a surdez como uma família, escancarem os
medos, angústias e necessidades de cada um, afinal, vocês vivem sob o
mesmo teto e convivem com a surdez. A surdez de um familiar também é parte da família!! Já
pararam para pensar no quanto isso é verdade e faz sentido? Se bobear,
ela acaba virando o familiar mais expressivo e notado da casa toda – e a
TV ligada no último volume e os milhares de ‘hãn’ estão aí para nos lembrar disso.
As pessoas me contam suas histórias e percebo que aquelas que têm um roteiro triste assim o são por falta de diálogo e de informação. Em muitos casos, o bullying acontece dentro da própria casa!!!
Num núcleo familiar podemos ter vários
comportamentos e interações diferentes. Lembro que meu irmão nunca
tocava nesse assunto comigo porque não queria me magoar nem me ver
triste, e é a única pessoa que até hoje só fala comigo se eu estiver
olhando para ele e me cutuca para me chamar. Minha mãe demorou anos até
não querer mais estrangular alguém que me chamasse de ‘surda’. Minha vó
tremeu na base quando decidi partir pro IC mas se manteve forte para não
demonstrar seus medos e tirar minha coragem. Só a gente sabe o que rola
dentro de casa com nossos familiares, não?
Os três fatores que considero primordiais na convivência de uma família de ouvintes que possui um ou mais membros com deficiência auditiva.
1.PACIÊNCIA, MUITA PACIÊNCIA
Ouvir e conviver com quem não ouve não é tarefa fácil.
Você precisa respirar fundo dezenas de vezes por dia quando a pessoa dá
os ombros, se magoa com algum comentário, se frustra porque não ouviu
algo. Você vai precisar aprender a dominar a arte zen budista de colocar
seus sentimentos e necessidades em segundo plano por um tempo, mas não
caia na roubada de fazer isso a vida inteira.Você vai ter que ser os
ouvidos do outro em várias situações, você vai ter que prestar mais
atenção do que o normal nos sons da casa, você vai precisar prestar
inúmeros favores telefônicos, você vai dar colo em muitas situações em
que outro sofrer bullying ou for magoado por alguém, se bobear você até
vai aprender a ler lábios e a antever respostas para perguntas
desagradáveis. Você vai achar que virou um papagaio de tanto repetir as
coisas. É assim mesmo. Quando somos pais, irmãos, avós ou tios de alguém
que não ouve, essas tarefas são tranquilas. Quando somos cônjuges,
precisamos avaliar se damos conta do recado de verdade. Eu sou a favor
da paciência, precisei dela por 31 anos e hoje vejo como usei e abusei
da paciência da minha família. Faria muita coisa diferente pois coloquei meu fardo nos ombros deles por birra, por preguiça e por negação.
Como dizem por aí, ‘paciência tem limite’. Quando a pessoa que não ouve
será de fato ajudada por aparelhos auditivos ou qualquer outra
tecnologia para voltar ao mundo dos sons, acho que a família tem que
buscar isso; se a pessoa se recusar ou não quiser, fazer o quê, mas
penso que os familiares têm o direito de expressar seu descontentamento
com esse egoísmo. Ser familiar de alguém que não ouve é ser lembrado
quase 24 horas por dia de que precisamos nos colocar no lugar do outro
antes de julgar ou apontar o dedão. É aprender como é estressante,
frustrante e cansativo não ouvir, bem como ouvir e dividir a casa com
quem não ouve.
2.INFORMAÇÃO, MUITA INFORMAÇÃO
Informação é poder.
Conheço toda semana famílias que aceitam um diagnóstico de surdez com
braços cruzados, fatalismo e uma dose exagerada de coitadismo. Isso não
faz bem nem à pessoa que não ouve, nem aos familiares. Acho necessário
esse empoderamento da família: todos devem saber o que é a surdez, como
adaptar a casa para aquele que não escuta, quais são os direitos dessa
pessoa, o que a tecnologia pode fazer por ela, como ajudá-la na escola
ou no trabalho. Quando lidamos com alguma deficiência temos obrigação moral de saber tudo sobre ela, caso contrário, cairemos facilmente na conversa ou nos achismos alheios. E fazer
parte de um núcleo familiar bem informado sobre o que acontece conosco
nos dá confiança e segurança para lidar com quaisquer situações difíceis
que aconteçam fora de casa. Empodere a sua família buscando e
compartilhando toda informação possível sobre surdez, conecte-se com
outras famílias que têm a mesma experiência de vida. Juntos somos mais
fortes! Só não fique fechado numa concha sofrendo resignado à espera de
um milagre
3.REABILITAÇÃO AUDITIVA, POR FAVOR!
Até que ponto uma pessoa que não ouve
tem o direito de se fechar em seu mundinho e negar à sua família os
benefícios da reabilitação auditiva? Aí está uma boa discussão moral! Se
o indivíduo em questão pode usar aparelho auditivo ou implante coclear
para voltar ao mundo dos sons e se recusa, está sendo egoísta.
Hoje em dia tenho vergonha de lembrar das milhares de horas em que não
quis usar aparelho auditivo em casa apenas porque não estava a fim, e
com isso não fui um membro da família generoso e participativo – não
ajudava a ouvir porta, interfone, campainha, telefone e tudo o mais
simplesmente porque não queria me dar ao trabalho. Quando vejo alguém
agindo assim, confesso que sinto vontade de puxar a pessoa para uma
conversa. Acho que quem convive com alguém que não ouve tem não apenas o
direito, mas também o dever de insistir na reabilitação auditiva.
Recebo todos os dias mensagens de mães desesperadas porque seus filhos
adolescentes entraram numa fase de se recusar a usar aparelho auditivo
ou implante (principalmente por vergonha e vaidade, essa fase é fogo!).
Coabitando uma casa, onde está escrito que os ouvintes devem gostar de
TV no último volume, de ter que se preocupar com todos os barulhos
sozinhos, de ter que repetir as coisas mil vezes, de ter que sair
procurando a pessoa que não ouve pela casa cada vez que precisa falar
com ela? Acho que quanto mais cedo uma pessoa que não ouve sai da concha
de coitadinho ou do estado mental de isso-não-está-acontecendo-comigo-vou-negar-até-a-morte, melhor para a família inteira. Reabilitação auditiva é um direito da família e um dever da pessoa que não ouve.
Depois de voltar a ouvir com o IC é que pude entender de uma vez por
todas essa grande verdade. Faz MUITA diferença ser o tipo de pessoa que
tira o máximo de proveito da tecnologia para ser proativo dentro de
casa. É maravilhoso se propor a ser aquela pessoa que faz o melhor que
pode com as ferramentas que tem em vez de ser aquela pessoa que se
esconde atrás da deficiência auditiva.
Só depois de voltar a ouvir de verdade com um implante coclear é que tive o entendimento necessário de como o mundo sonoro é rápido, dinâmico e funciona na velocidade da luz.
Quando o som bate e entra no nosso cérebro basta um centésimo de
segundo para nos irritarmos com a falta de resposta a jato. Hoje não só
entendo como perdôo muitos acontecimentos do passado que envolveram
falta de paciência dos meus familiares comigo, pois só agora sou capaz
de compreender o grau de paciência, zen budismo e força necessários para
se conviver todos os dias com alguém que não ouve.
Algumas dicas para uma boa convivência
- Não fique fazendo testes para comprovar a falta de audição do familiar que escuta mal, quando somos testados nos sentimos um lixo!
- Não fale pela pessoa que não ouve, deixa ela se expressar como preferir na presença de outras pessoas;
- Não apresente a pessoa que não ouve para os outros como se ela não estivesse no recinto ou como se não pudesse se apresentar sozinha, e em hipótese alguma chegue falando ‘Essa é a Fulana, ela não ouve‘ – você gostaria de ser apresentado para aguém dessa forma?
- Se a família estiver reunida batendo papo e lhe for solicitado que repita algo, simplesmente repita. Para nós não há nada pior do que perguntar o que foi dito e ter como resposta um ‘Nada’, ‘Não importa’, ‘Bobagem’ e derivados. Parece que não merecemos saber!
- Não infantilize a pessoa que não ouve deixando de confiar a ela certas tarefas apenas porque ela não ouve!
- Não fique berrando feito louco de outro cômodo na esperança que a pessoa ouça, vá até ela e cutuque-a!
- Em todas as situações possíveis faça um esforço para lembrar que uma pessoa que não ouve está envolvida, seja dentro do carro, seja no almoço de domingo ou onde for.
- Articule bem os lábios enquanto fala e saiba que uma boa dicção da sua parte nos ajuda demais a entender o que você diz!
- Não pergunte, quando estamos de aparelho, se ouvimos ou não ouvimos alguma coisa, especialmente se for em tom de teste. E em hipótese alguma diga, quando não entendermos ou ouvirmos algo, a péssima frase “Ah, mas você não está de aparelho?”
- Se por acaso nosso tom de voz estiver alto, não diga em tom de deboche ‘você está berrandooooo!’. Não custa nada dar um toque mais sutil e carinhoso nesses momentos!
- Deficiência auditiva não é deficiência de caráter e saiba que ninguém que ouve mal gostaria de estar passando por isso, portanto, tenha isso em mente quando se irritar ao precisar repetir uma frase ou palavra 3 vezes!
- A adaptação aos aparelhos auditivos leva um bom tempo e eles podem machucar, irritar e nos deixar com dor de cabeça; seja compreensivo nos meses necessários para a adaptação!
- Se estivermos deprimidos ou irritados em função da surdez, às vezes só precisamos de espaço para respirar fundo e conseguir reunir forças outra vez!
- Não finja que nosso problema não existe: é só uma questão de adaptação a esta nova realidade!
- Não diga coisas como ‘ah, você está se fazendo de louco‘ quando não ouvimos ou entendemos algo – não temos controle sobre a nossa surdez e muito menos sobre a sua falta de noção!
- Não aja como se tivesse vergonha da nossa deficiência auditiva, nada nos magoa mais do que isso.
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