O trabalho em sala de aula com alunos surdos vai muito além da presença de um intérprete de línguas de sinais.
Por Naide Sousa
Crianças surdas que são nascidas e criadas em famílias com pelo menos um responsável também surdo têm contato com a língua de sinais desde o começo de suas vidas. Esse contato permite que elas se desenvolvam e tenham um domínio da língua de forma mais natural e fácil. “Quando uma criança surda recebe estímulos visuais desde bebê, a tendência é repeti-los e iniciar os processos de comunicação e aprendizado, semelhante ao que acontece com uma criança ouvinte”, afirma Terezinha Rocha, professora do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da Faculdade de Educação da UFMG.
Na escola, a fluência na língua de sinais, a Libras, no Brasil, reflete num processo mais fácil de alfabetização da criança surda. Segundo Luciana Freitas, professora e orientadora educacional do Centro de Capacitação de Profissionais da Educação e Atendimento às Pessoas com Surdez (CAS-BH/MG), “geralmente a gente vê nas diversas situações de aprendizagem que, para o aluno surdo que já tem a língua 1 (Libras), a compreensão dele da língua 2 (português) acontece de uma forma mais favorável do que daquele que não tem nem uma, nem outra”.
Fernanda Soares, professora e coordenadora do curso de Letras-Libras da UFRJ, que é surda e atuou como instrutora na rede municipal de Belo Horizonte (MG), conta da experiência de seu filho, também surdo: “Como ele já teve a experiência prévia de aquisição e desenvolvimento da linguagem, hoje em dia é possível que tenha para ele intérprete na sala de aula. Porque o intérprete sinaliza sabendo que ele já sabe Libras. E o meu filho tem desenvolvido bastante em relação à leitura escrita da língua portuguesa.”
“Quando a criança ainda não interage por meio de uma língua, o envolvimento nas brincadeiras, o aprendizado da rotina escolar, a compreensão de regras, a participação nos momentos literários e todas as outras atividades escolares acabam não fazendo sentido para ela”, explica Terezinha.
Mas nada disso põe-se como impeditivo para a alfabetização de estudantes surdos que ainda não têm domínio da Libras. Estes são a maioria, já que um grande número de crianças surdas vem de famílias predominantemente ouvintes. E, em geral, os responsáveis ouvintes ou desconhecem a língua de sinais, ou são resistentes ao seu ensino e uso, o que limita a criança surda à comunicação mais básica, levando-a a realizar gestos caseiros criados por ela mesma.
Para essas crianças, é importante que a Libras seja valorizada e ensinada como primeira língua na escola, mesmo que seja aprendida simultaneamente ao português escrito. “Se esse processo não for feito, a gente tem uma queda, um prejuízo. E é muito importante ter esse incentivo para as pessoas surdas, esse aprendizado de uma primeira língua, para que depois elas consigam escrever a língua portuguesa e sinalizar”, aponta Fernanda.
Ler com a visão
Fluentes ou não em Libras, a alfabetização das crianças surdas, em geral, esbarra nos obstáculos do ensino-aprendizado da língua portuguesa que, tradicionalmente, tem os seus métodos e estratégias voltados para os estudantes ouvintes.
Como ilustra Luciana Freitas, “para que um aluno ouvinte escreva, por exemplo, ‘bola’: se ele conhece os sons e as sílabas ‘bo’ e ‘la’, ele junta e escreve. Agora, para o aluno surdo, qual é a dificuldade? Ele não tem esse som de ‘bo’, de ‘la’. Ele pode fazer uma leitura labial, mas se você me olhar sem o som, eu posso falar cola, bota”. Os processos de ensino comuns são baseados no campo auditivo, o que anula infinitas possibilidades para quem comunica, pensa e aprende pelo visual.
Para garantir o desenvolvimento escolar de estudantes surdos, é necessário que o professor tenha em mente a valorização do espaço visual. A importância da aquisição da primeira língua ser a língua de sinais passa justamente por esta ser uma língua visuoespacial e o campo de visão ser a primeira forma de apreensão do mundo da pessoa surda, sendo não só a via natural pela qual ela se comunica, mas também pela qual ela aprende.
O professor pode lançar mão de recursos visuoespaciais, como a criação de um material de apoio visual que contém ilustrações das palavras e conceitos a serem ensinados, e que também pode ser usado como ferramenta de ensino para os alunos ouvintes. Outros elementos visuais que podem ser usados são fotografias, filmagens, pinturas e objetos concretos. Mas, na especificidade dos alunos surdos, esses materiais precisam ser contextualizados. “Tudo o que for contextualizado para o aluno surdo, primeiro, é mais interessante também para qualquer outra pessoa, e, principalmente, para aquele aluno”, afirma a professora Luciana.
Ainda no exemplo com a palavra bola, Luciana diz: “Eu preciso ver essa palavra em vários contextos para que eu me aproprie dessa palavra também, porque não posso só ensinar a palavra bola e o sinal de bola, mas o contexto em que está essa palavra bola. Pode ser bola de sorvete, bola de brincar, ‘me dá a bola’...” Ou seja, mais do que ver o objeto ao qual se refere uma palavra e aprender seu sinal, é importante que o aluno saiba o lugar daquele objeto, para que ele serve e como pode ser usado. E também os usos da palavra, já que esses podem mudar de acordo com o contexto.
Todo apoio é garantido
Apesar de recentes, as políticas públicas de acolhimento das crianças surdas nas escolas — especialmente na perspectiva bilíngue, ou seja, o ensino da língua portuguesa e da Libras juntas — existem e são asseguradas enquanto direitos. Mesmo que o professor não tenha domínio da língua de sinais e pouco conheça sobre a educação para alunos surdos, tanto ele quanto o aluno e toda turma recebem orientações.
Assim que o aluno surdo ingressa na escola, o serviço de apoio à inclusão da rede em questão é solicitado. Por meio desse serviço, a criança surda pode contar, em sala de aula, com um intérprete de Libras e, também, pode ter acesso a um instrutor para aprender a língua de sinais. As aulas com instrutor ocorrem no contraturno escolar da criança, dentro do Atendimento Escola Especializado (AEE). O serviço de AEE, que é disponibilizado para todos os alunos com deficiência, também atua junto ao professor, auxiliando-o na preparação das aulas e de materiais que atendam às especificidades do aluno surdo.
Muitas redes, sejam municipais ou estaduais, têm trabalhado para que a Libras esteja sempre presente no ambiente escolar. Na rede municipal de Belo Horizonte, a exemplo, o projeto Disseminação da Libras oferece capacitações em língua de sinais a pedido das escolas, sem a necessidade de a escola ter um aluno surdo ali matriculado. “Se o diretor vir que há o interesse de alguns professores, ele pode solicitar um tutor, um professor de libras. E esse professor vai ensinar libras nessa escola, nessa sala de aula. Isso com o objetivo de que essa língua seja para todos.”, aponta Luciana Freitas.
Ações assim vão ao encontro, ainda que muito lentamente, da meta nº 4 do Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014, que aprova a criação de classes ou escolas bilíngues para surdos. Essa é, inclusive, uma antiga defesa da comunidade surda que reivindica que as crianças surdas tenham sua alfabetização em salas ou escolas bilíngues, uma vez que, como aponta Terezinha Rocha, “as hipóteses nos processos de aprendizado da leitura e da escrita delas se diferenciam das dos ouvintes”.
A criação de salas de aula e escolas bilíngues não parte do desejo de afastar novamente as crianças surdas da escola comum, como muitas vezes já ocorreu; mas, sim, de incluir a Libras nessas escolas de forma valorizada e não como algo “acessório”. Especialmente na alfabetização, quando a criança, além de aprender a ler e escrever, estará tendo contato com uma, às vezes duas nova(s) língua(s).
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