Essas pessoas com deficiência
“Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.
Ninguém é igual a ninguém.
Todo o ser humano é um estranho ímpar.”
Carlos Drummond de Andrade, Igual-Desigual, in A Paixão Medida (1980).
Por Lucio Carvalho*
Elas já foram deficientes. Excepcionais. Portadores de deficiência.
Portadores de necessidades especiais. Agora, ou melhor, desde que a
Convenção sobre Os Direitos das Pessoas com Deficiência foi promulgada
com status de emenda constitucional, em 2008, são apenas pessoas com
deficiência. Mas nem assim cessou o preconceito e superou-se a
estigmatização.
Como parece impossível que sejam pessoas simplesmente nomeadas ou
apontadas em um contexto social heterogêneo, a redação jornalística
contemporânea vem encontrando novas e inadvertidas forma de
estigmatização. Pessoas com deficiência, para efeito de referência, são
“essas pessoas”. É o que se encontra invariavelmente em 99% dos textos
jornalísticos e reportagens sobre qualquer tema envolvendo a
deficiência. Por que não simplesmente usa-se “eles”, “nós” ou os demais
pronomes pessoais e oblíquos disponíveis no vernáculo é algo ainda a ser
melhor compreendido.
O problema é que, até chegar ao ponto de compreender o que acontece,
muito do que está oculto e embutido na linguagem e na forma como ela é
empregada emerge, quando não simplesmente salta aos olhos. Ou até mesmo
agride.
Isso é o que acontece, por exemplo, quando se procura usar qualquer
tipo de deficiência como um qualificativo, ou até mesmo uma metáfora.
Ser cego, surdo, autista ou ter uma deficiência intelectual não são
experiências comparáveis, razão pela qual o uso de qualquer um dos
termos (e qualquer outro tipo ou denominação e deficiência) resvala
quase sempre para um significado depreciativo, o que empresta e
corrobora um sentido negativo para as condições, absolutamente normais
na experiência humana.
Desde que foi introduzida por aqui a controvertida ideia do
“politicamente correto”, a situação não melhorou nem um pouco, porque o
cuidado excessivo acaba derivando para outra forma de discriminação e
exageros igualmente estigmatizadores. Uma dica elementar para alguém
entender se está se referindo de forma efetivamente preconceituosa, ao
usar uma metáfora ou comparação, é verificar se o termo escolhido é
elogioso ou caluniante. Se for caluniante ou prestar-se a um xingamento,
não há então do que duvidar, é preconceito.
O “essas pessoas”, no entanto, surge em muitos outros contextos e, na
maioria das vezes, de forma absolutamente gratuita. Seja num anúncio
simples de um serviço oferecido às pessoas com deficiência ou uma
situação envolvendo grupos sociais, quando se refere às pessoas com
deficiência como “essas pessoas” o que se obtém é uma diferenciação
automática em relação aos demais e uma uniformização de identidades.
Como se de um contexto social múltiplo e diversificado elas fossem
arrancadas ao grupo homogêneo de seus iguais, quando é óbvio pensar que,
como quaisquer outras pessoas, nem mesmo pessoas com a mesma
deficiência são pessoas iguais, imbuídas de uma personalidade única.
Além disso, a deficiência é uma expressão decorrente da relação do
indivíduo com o meio social, não é um conceito ambulante.
Talvez alguém faça a objeção de que é apenas uma tentativa de
agrupamento, inocente e inofensiva, que aqui há mais politicamente
correto. Basta substituir o termo por outros e proceder a verificação.
Se, em um texto, por exemplo, sobre a população negra, gays ou outras
minorias se substituísse o coletivo por “esses negros”, ou “esses gays”
ou mesmo “essas pessoas” o texto soaria claramente preconceituoso, não?
Por que então, com as pessoas com deficiência, poderia ser diferente?
Cada pessoa é uma pessoa e cada pessoa com deficiência é uma pessoa
também, por isso utilizar a expressão “essas pessoas” na redação
jornalística ou em qualquer outra é um tipo de uniformização sem
sentido. Caso se tratasse de animais, poderia dizer-se “essas vacas” ou
“esses dromedários”, mas ao tratar-se de pessoas nunca é demais lembrar
que ninguém é igual a ninguém e que tomar o sujeito pela característica
anula o que há de mais precioso nele, ou seja, sua própria, implícita e
incomparável humanidade.
* Coordenador-Geral da Inclusive – Inclusão e Cidadania
http://www.inclusive.org.br/?p=26725