‘Eu tinha 28 anos em 1999,
quando, após uma inflamação boba no tímpano, decorrente de um mergulho,
uma médica pediu uma audiometria “só para ter certeza” de que tudo
estava bem. Apareceu uma perda moderada no ouvido direito.
Aí me dei conta de que ficava achando que o celular tinha problema, a
toda hora aumentando ou diminuindo o volume, sem perceber que era porque
estava em um ou outro ouvido. Que pedia para saírem da frente da
televisão “porque eu não estava ouvindo”, o que era uma piada pronta. Sim, a surdez estava ali, e não era por conta da inflamação no tímpano, já estava lá antes.
O momento da vida era o “tudo ao mesmo tempo agora”: casado há um ano e meio, aprovado há dois num concurso para Procurador,
no primeiro ano do Mestrado, minha primeira experiência como Professor.
Claro, fiz que não era comigo e passei a virar a cabeça de lado quando
queria ouvir melhor. Sempre gostei de falar em público e sempre me achei bom nisso.
Mas os problemas foram piorando. Ao chegar para uma audiência, troquei
de lugar com a parte, para poder ouvir melhor o que o Juiz diria. A
Juíza entrou e, com impaciência, me mandou destrocar, afinal “aquele não
era o lugar certo” (embora não faça a menor diferença para o andamento
dos trabalhos). Tive vergonha de dizer o motivo, fui para o lugar
“certo” e ainda tive que ver os risinhos dos funcionários, que achavam
que eu simplesmente não sabia onde me sentar na audiência. Num
seminário, em que eu era um dos dois palestrantes e ainda havia um
mediador, troquei a plaquinha de lugar, para ficar à direita (e poder
ouvir o mediador falar ao meu ouvido esquerdo). Mas a zelosa funcionária
foi lá, desfez a troca e ainda ficou zangada comigo (afinal – falo
sobre isso em outro texto para o blog – para ela e para todo mundo não existe meio-surdo, e se eu era surdo não deveria ter a petulância de estar ali palestrando).
Os otorrinos são um capítulo à parte.
Não vou citar nomes, para não cometer injustiças, já que a minha
experiência individual pode não refletir o todo do profissional. O
primeiro, após confirmar a audiometria, disse o seguinte: pela medicina
do trabalho, só é considerado inválido quem tem surdez bilateral, se
você só tem perda em um ouvido, e ainda mais parcial, não pode se
aposentar. Então tá: eu ali, aos 30 anos, iniciando duas carreiras que
dependem da audição e da fala, cheio de sonhos e de planos, esperando
meu primeiro filho e ele achando que eu queria me aposentar? Na saída,
vi o diploma de “médico do trabalho” orgulhosamente pendurado na parede e
nunca mais voltei. Fui ao segundo. Esse disse que não faria a cirurgia
porque, pela literatura médica, 1 em cada 50 estapedectomias (2%)
resulta em perda total da audição, sem possibilidade sequer de usar o
AASI depois. O terceiro, foi exatamente o oposto. Paguei 250 reais
(em 2001) pela consulta para, em menos de 5 minutos de conversa, sem
olhar para meu rosto e sem levantar da cadeira, me entregar um papel com
os preços dele, do assistente, do anestesista e dizendo que exames eu
teria que fazer para a cirurgia. Quando tive a audácia de perguntar
sobre a tal estatística dos 2%, ele disse: “é verdade, mas eu já fiz
mais de 500 cirurgias desse tipo, e todas que deram errado eu operei de
novo e o paciente recuperou a audição”. Também nunca mais voltei.
Minha teimosia continuava.
Concluí o Mestrado e continuei dando aula e fazendo sustentação oral (é
o nome que se dá às argumentações orais que os advogados fazem nos
tribunais). Hoje, olhando para trás, tenho certeza de que no dia da
minha defesa de dissertação, fiz um bocado de leitura labial inconsciente,
pois o ouvido direito já tinha uma perda séria e o esquerdo começava a
cair, embora devagar. No velho dilema entre operar ou não, optei pelo
AASI e detestei. Um intra-canal, que vivia entupindo de cera, dava
microfonia e me deixava com dores. Acabou abandonado.
Foi aí que o destino deu uma daquelas voltas inexplicáveis.
Estávamos esperando nosso segundo filho e minha mulher teve uma
inflamação séria no tímpano. O obstretra encaminhou para um otorrino e,
por esse caminho torto, acabei achando o médico em que confio 100%.
Calmo, ponderado, conversou longamente comigo sobre como era a minha
rotina e o quanto ouvir bem era ou não importante para mim. Também não
me deixou decidir logo pela cirurgia. Quis que eu pensasse durante
alguns meses, afinal o risco existe, e eu estava com dois filhos
pequenos, em ascensão profissional e ainda relativamente jovem. Só então
que – até quando esta expressão vai resistir – “a ficha caiu”. Após
todos estes anos, eu não havia pronunciado a palavra “surdez” uma única vez. Afinal, mesmo sem perceber, eu ainda me via “do outro lado”, achando
que surdos eram criaturas de outro mundo, que só usavam linguagem de
sinais e se sentiam confortáveis com o buzinaço de um engarrafamento. Sim, eu ainda tinha muito o que aprender sobre qual era “o meu mundo” e como ele era.
Fiz a cirurgia em 2003 e foi um sucesso.
Fiz uma doação do meu antigo AASI e segui a vida. Quando fiz a
audiometria de controle, seis meses depois, mais uma surpresa: o direito
estava bom, mas o esquerdo havia caído tanto que, no global, eu estava
ouvindo pior. Não desanimei e fui para a segunda cirurgia. Bingo!
Audição quase normal nos dois ouvidos. E aí, pé no acelerador. Voltei a
estudar inglês, passei um mês numa Universidade americana, me candidatei
a dois doutorados aqui no Brasil, e comecei a cursar um deles em 2007.
Com a vida acelerada, comecei a relaxar nas audiometrias, cheguei a
deixar passar mais de um ano sem fazer. Mas os sinais voltaram. E o auto-engano também.
Que celular ruim, não consigo uma ligação decente. Como esse cara fala
mal, não tira a mão da frente da boca! Como esse pessoal do trabalho ri
de piada sem graça!
Comecei a ficar atormentado com a acústica dos Tribunais. Será que ninguém pensa que um surdo também pode advogar?
Não existia nada pior do que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul. Não sei se ainda é assim, mas as salas de julgamento tinham chão de
taco e divisórias de compensado. Quando alguém passava ao lado da sala
– pelo lado de fora – com um sapato de salto barulhento, era o
suficiente para eu não entender nada. E, embora houvesse microfones em
algumas salas, os Senhores Desembargadores simplesmente “não gostavam”
de usá-los, além de falar olhando para baixo e com péssima dicção.
Mas retomei as audiometrias e elas não mentiam.
A otosclerose estava de volta, agora coclear. Progressiva e incurável.
Minha companheira para o resto da vida, junto com o zumbido, que nunca
me abandonou. Não podia mais me apoiar na ideia de que um dia iria
fazer uma cirurgia e acordar desse pesadelo. Foi a segunda “queda de
ficha”. A audição nunca mais iria melhorar, só piorar. E aí eu descobri
que, para ser surdo, não importa o tamanho da sua perda auditiva,
importa o quanto ela interfere nos seus sonhos e nas coisas que você
faz na vida. Imaginei um professor de música com uma perda
moderada. Um cardiologista que não consegue mais usar o estetoscópio. A
mãe que não consegue ouvir, ao telefone, os filhos adultos que moram em
outra cidade. Sim, quanta gente sofre em silêncio e, como eu já pensei um dia, acha que não tem nem o direito de se considerar surdo.
Esta descoberta foi libertadora. Acho que tinha uma certa “comiseração às avessas”: nunca gostei de falar sobre o assunto, nem de me ver como surdo, porque sei que muitos têm perdas bem mais sérias que a minha.
Como eu poderia dizer que sou surdo se ainda consigo falar ao telefone
(muito mal, mas consigo), se jogo futebol e muitos dos meus companheiros
de jogo nem sabem da deficiência (embora reclamem da minha “desatenção”
na hora em que pedem para eu passar a bola)?. Além disso, nunca quis
ouvir algo do tipo: “nossa, ele conseguiu isso tudo apesar da deficiência”.
Redescobri então o AASI, em 2011, desta
vez bilateral, muito mais moderno (o que dez anos de progresso não
fazem!), levíssimo e fora do canal. Agora já não tinha mistério. Sempre
gostei de usar o cabelo bem curto, e lentes de contato em lugar dos
óculos. Continuei fazendo assim, pois os aparelhos ficam bem visíveis e
é bom que fiquem mesmo. Passei também a ver a vida como uma espécie de
corrida contra o tempo. Já que a doença é progressiva e
um dia me deixará completamente surdo mesmo, vou logo tentar realizar
todos os sonhos. Me candidatei a um pós-doutorado no exterior e, por
conta disso, fui aprender francês.
A vida, realmente, nos prega peças. E não é por acaso, é porque precisamos aprender algo. No meu caso, é porque nestes quinze anos nunca havia compartilhado minhas angústias com outras pessoas que tivessem o mesmo problema.
Não tinha amigos surdos, nunca conversei com nenhum surdo, nunca tinha
contado minha história. Acho que é por isso que este texto está tão
longo. Quinze anos esperando para contar para alguém.
Bem, mas porque eu disse que a vida nos
prega peças? Continuando a história, meu projeto do pós foi aprovado e,
sem saberem da minha surdez, me mandaram um convite para, logo no início
do período, fazer uma palestra (em inglês) para estudantes de
pós-graduação que estariam aqui para um módulo de três semanas. Passei
noites sem dormir, principalmente depois que cheguei aqui e vi que os
estudantes tinham origens e sotaques tão diferentes, que eu não
conseguia entender absolutamente nada do que metade deles falava. Meu
grande medo era não conseguir entender as perguntas. Quando terminei de
falar, pedi aos alunos que perguntassem bem devagar e olhando para mim,
“porque tenho dificuldade de entender alguns sotaques”, e me desculpei
por isso. Tudo deu certo, consegui entender quase tudo e responder a
tudo. Fui dormir alividado e muito, mas muito feliz. No dia
seguinte, porém, aconteceu algo extremamente desagradável, que eu
prefiro não contar, relacionado à surdez. Um dia no céu, outro no inferno!
Cheguei à Universidade muito triste e
procurei no google “otosclerose coclear”. Talvez eu estivesse, numa
recaída, de volta à procura por uma solução mágica, uma cirurgia, uma
pílula milagrosa, negando a realidade. A solução mágica não veio, mas
veio a prova de que, como eu disse lá em cima, a vida prega peças e o destino dá voltas inacreditáveis que nos levam ao lugar certo. Não descobri a solução mágica – que eu sei que não existe – mas cheguei a este blog, que trouxe a peça que faltava no meu quebra-cabeça:
descobrir outras pessoas com problemas parecidos (quase sempre mais
graves), saber de suas angústias, rir e chorar com as histórias. Detesto
a ideia de falar da minha vida na internet (por isso, até hoje, não
tenho conta em nenhuma rede social), por isso me surpreendi com minha
vontade de compartilhar coisas tão íntimas com tantas pessoas que eu nem
conheço. Ou melhor, conheço bastante, pois ao menos sei que eles têm a
exata noção do que é “sempre ouvir, às vezes endender e nunca ter a certeza de realmente ter entendido”. Obrigado, Paula.’
http://cronicasdasurdez.com/surdo-oralizado-e-procurador/?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3A+CronicasSurdez+%28Cr%C3%B4nicas+da+Surdez%29
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