A HISTÓRIA DA TEIMOSIA – Diana Sampaio
 Isto mesmo… O título é bem apropriado à minha história… Nasci com Goldenhar, uma síndrome rara…
 Como sintomas, 4 vértebras fundidas na cervical, o que me reduz um 
pouco a mobilidade do pescoço e restringe certas atividades físicas de 
impacto… Também tive a microssomia hemifacial, uma assimetria do rosto, 
no meu caso, no lado direito da face, que me rendeu duas cirurgias 
buco-maxilo-faciais bem traumáticas, até me deixar com um rostinho 
minimamente apresentável… No pacote, tinha direito a hidrocefalia, 4 
cirurgias neurológicas, sequela motora e estrabismo… Trocando em miúdos,
 a má formação dos 2 ouvidos externos, com surdez mista, moderadamente 
severa e bilateral nunca foi realmente o maior dos meus problemas… 
Entretanto, seguramente foi um dos que mais me irritou e incomodou…
De fato, diante de outras questões, não era algo assim tão sério, mas com os meus antecedentes, eu
 não sou exatamente uma pessoa acostumada a respeitar limites e aceitar 
que não posso ir adiante, ou que pra uma determinada coisa “não tem 
jeito”… E com relação ao meu tipo de perda, durante muitos e muitos anos, isto foi sempre o que eu ouvi… “Seu tipo de perda é pouco comum, não há muitas estatísticas, não é um tipo de perda rentável,
 o mercado audiológico não se interessa em pesquisar novas alternativas 
para este tipo de perda… Se você tivesse perda profunda ou severa 
neurossensorial, existiria o IC, mas para o seu caso, tudo que existe é 
aquele vibrador ósseo convencional, que você já conhece, nada de novo…” Costumava responder que arranjavam solução pra pneumonia e me deixavam morrer de gripe, guardadas as devidas proporções…
O fatídico vibrador ósseo convencional era uma geringonça horrorosa,
 com uma passadeira, arco ou tiara, como queiram os regionalismos, presa
 a um fio, que ficava acoplado a uma caixinha, onde havia o volume e o compartimento
 de bateria… Quando eu era criança, a qualidade do som era bastante 
ruim, havia muita microfonia e ruído de fundo e, em se tratando de perda
 moderada, eu me sentia mais confiante sem usar nada… Dos 7 aos 15 anos,
 simplesmente não usei nada, além de LOF… Sentava na frente, lia os 
lábios da professora, prestava atenção às aulas e isto era tudo… E 
sempre fui excelente aluna, sempre amei ler e escrever, nunca perdi um 
ano da escola, sempre estudei em bons colégios regulares e particulares, aprendi línguas e tudo mais…
Além de ser um trambolho, perto dos 
intracanal, microcanal e demais opções para surdez neurossensorial e 
além da qualidade do som duvidosa, o problema do vibrador ósseo 
convencional é que ele causava apertamento e afundamento de crânio, o 
que não era um bom prognóstico pra quem já tinha antecedentes 
neurológicos, assim como eu… Pra não falar nas dores de cabeça 
constantes… Ademais, havia o agravante de que a minha surdez era 
bilateral e o vibrador da tiara nunca me proporcionou audição binaural… 
Isto afetava, naturalmente, a localização e a discriminação do som…
Enfim… O fato é que, durante a minha vida inteira, ruim ou bom, o trambolhinho era a minha única alternativa… Rejeitei os anos que pude, mas isto me tornou um ser anti-social… Eu era extremamente inteligente, excelente aluna,
 mas patologicamente tímida… Ao ponto de não telefonar nem pra minha 
avó, ao ponto de não ter coragem de pedir o meu próprio lanche, numa 
lanchonete, ao ponto de praticamente não ter amigos… Quando cheguei à 
adolescência, estes entraves se tornaram mais nítidos e precisei me 
render ao aparelho… Já nesta época, é preciso confessar que havia 
melhorado um bocado, pelo menos no que se refere à qualidade do som… 
Quanto ao resto, permaneciam todas as demais queixas, mas tornou-se um 
mal necessário na minha vida…
Aos 19 anos, fazendo intercâmbio nos 
EUA, do qual voltei, à época, com um TOEFL score suficiente para ser 
aceita como aluna regular na Universidade de Berkeley, se quisesse 
(ousada, eu???), encontrei uma versão mais moderna, que só tinha a tiara
 e não mais a caixinha, já não parecia mais com um walk man, já era uma 
espécie de up grade… A qualidade do som também era melhor… Pela 
primeira vez, ouvi o som de um grilo e o barulho da seta do carro, que 
cheguei a pensar, na verdade, ser algum defeito, de tanto que o som era 
novo pra mim… Ainda assim, permaneciam o apertamento e afundamento de crânio, juntamente com as dores de cabeça e as limitações decorrentes de se ter audição unilateral apenas…
Inconformada por natureza que sou, sempre busquei outras alternativas… Sempre dizia que não ia morrer usando aquela passadeira… Fui a SP, ao Centrinho, a tudo que era tido como melhor, referência no assunto… E sempre as mesmas respostas; muitos “nãos”… Quando
 fui ao Centrinho e voltei de lá bastante desapontada, cheguei a ouvir 
da minha própria mãe que eu desistisse de procurar por algo que não 
existia… Nos dizeres dela, eu tinha baixa tolerância a 
frustração, era movida a desafios e precisava entender que na vida a 
gente não pode tudo, não consegue tudo, não supera tudo… Existem limites
 que não podem ser transpostos… E nós ouvimos mais não do que sim… Eu 
engoli aquele sapo, na época, porque realmente não havia nada de efetivo
 que eu pudesse retrucar…
 Só disse a ela que, por enquanto, ficava com aquela resposta dela, mas 
não ia me conformar… Eu poderia ouvir 10 nãos e ia chorar, me descabelar
 em todas as vezes, mas ainda haveria o dia de eu ouvir um sim…
Eu não morreria usando aquela passadeira, esta era a única certeza que eu tinha… Isto foi há bem mais de 10 anos atrás, mas eu, de fato,
 estava certa… Em junho de 2006, meu vibrador quebrou e, como minha irmã
 estava morando na Alemanha e meus pais foram visitá-la, dei-lhes a 
incumbência de procurar, na Europa, alguma novidade pra mim, já que o 
modelo reduzido da tiara eu encontrei no exterior… Voltaram com o folder
 do BAHA que, na época, ainda nem era uma marca da Cochlear… Na Europa, o
 aparelho já tinha a minha idade, até um ano mais que eu… Por aqui, não 
havia chegado ainda, só pra variar… Foi o bastante para me sentir que 
nem criança de quem tomaram o pirulito…
Implantar fora seria os olhos da cara,
 depois teria que aguardar o tempo da osseointegração para a ativação, 
que no BAHA, é 2 a 3 vezes mais demorado do que no IC e depois, voltar 
pro Brasil sem ter assistência técnica e nem reabilitação 
fonoaudiológica adequada… Realmente, não dava… Fiquei muito frustrada e 
comecei a dar meus pulos por aqui pra ver como podia fazer…Fuça daqui, 
procura dali, acabei chegando ao contato daquela que se tornou a minha 
amada e adorada fono da época, responsável, juntamente com meu otorrino,
 pelo meu pequeno milagre… Ela me disse que já tinha notícias do BAHA, 
que a Cochlear tinha comprado a marca e a Politec, na época, ainda 
estava tentando a autorização
 da ANVISA para a importação… Disse-me que havia um médico em SP que já 
havia feito alguns implantes, a título experimental, importando o 
aparelho para pesquisa e que eu poderia procurá-lo para questionar sobre
 a viabilidade deste procedimento pra mim… Fiz isto, mas o tal médico 
afirmou que não estava mais realizando estas pesquisas e que só me 
restava aguardar os trâmites da Politec, junto à ANVISA.
Nesta época, eu já tinha 6 meses de 
aparelho quebrado e não podia mais aguardar… Comprei outro vibrador 
ósseo do modelo convencional e estava disposta a gastar a vida útil 
dele, “namorando” com o BAHA pela internet, até o momento oportuno… Até 
mesmo porque, acreditava que, devido à novidade, o plano não cobriria e 
eu tinha acabado de adquirir um aparelho novinho e ainda estava pagando…
 Neste meio tempo, minha mãe teve um câncer bem sério que a 
debilitou bastante e eu deixei de ser prioridade na minha própria vida 
para vivenciar de perto o processo dela… Quando ela melhorou, 
precisei retomar a monografia da pós, abortada durante toda a tormenta… 
Em meio a tudo isto, acompanhava o desenrolar do BAHA no país… Já sabia 
que estava autorizado, já sabia que tinha equipe na Bahia, já sabia quem
 eram os profissionais, inclusive a fono da equipe era exatamente aquela
 que tinha me dado as primeiras notícias do BAHA no país e em quem eu 
havia confiado tanto…
Tinha tudo mapeado e catalogado… Até que
 o destino ajudou e o vibrador apresentou um defeito, com menos de 2 
anos de uso, em maio de 2009… Com mais de um mês e meio de idas e vindas
 na assistência, me irritei e decidi marcar a consulta do BAHA… Era a 
minha hora… Da fono pro otorrino foi só um passo… Das consultas pros 
exames pré-operatórios, nem senti… Meus pais nem se deram conta… Um belo
 dia, cheguei pro meu pai e falei: “Amanhã tenho uma tomografia, talvez 
tome contraste e não posso ir desacompanhada, você pode ir comigo???” Só
 aí ele se deu conta de que a coisa estava mesmo ficando séria e que eu 
estava decidida a operar e resolveu ir ao médico comigo na consulta 
seguinte para se inteirar de todo o processo…
Em agosto de 2009, fui a primeira implantada de BAHA do Norte/Nordeste e em março de 2010, a primeira biimplantada na região…
 Na semana da primeira ativação, fiz um ritual de passagem. Cortei os 
cabelos no pescoço, coisa que eu nunca fiz na vida, para melhor esconder
 o meu antigo trambolhinho… Até prefiro o cabelo grande, mas me dei ao 
luxo de cortar, só pra poder dizer que agora eu podia… E depois, outras 
delícias vieram… Me libertar em muito da LOF, ouvir o que se falava em 
outro ambiente, quando as pessoas não estavam esperando que eu ouviria… 
Ouvir cochichos no escuro… Ainda havia a promessa do bilateral… No
 dia da segunda ativação, eu não tive condições de observar nenhuma 
melhora na discriminação e na localização do som… A única coisa que eu 
tive forças pra fazer foi chorar igual criança… Chorei de soluçar… 
Quando vi aqueles dois bichinhos ligados ao mesmo tempo, passou um 
filminho de 31 anos em 5 segundos na minha cabeça… 
Com 31 anos de privação de binauralidade, obviamente, não tenho e nem terei localização sonora perfeita… No entanto, como tenho hidrocefalia associada a deficiência auditiva bilateral, a minha noção espacial também era afetada…
 Eu não dirigia antes do implante bilateral… Uma maravilhosa conquista, 
extremamente libertadora, ainda mais atualmente, depois de sair da casa 
dos meus pais para morar sozinha… E mesmo depois de 3 anos de 
binauralidade, em 2013, ainda me peguei chorando, em meio ao trânsito, 
após constatar, durante uma semana de observação cuidadosa, que agora eu
 reconhecia, com 100% de acerto, de que lado vinham as buzinas das 
motos… Só posso dizer que, depois de conquistar a binauralidade 
que nunca tive antes, precisei voltar para a psicoterapia, para 
readequar minhas noções de limites e traçar novas metas, desejos e 
aspirações, porque depois do segundo BAHA, cheguei a achar que iria 
morrer, agora que até o que era “impossível” eu já tinha alcançado… 
Como valeu ser teimosa, ter ido de encontro ao mundo inteiro que me negava esta possibilidade…
 Como valeu ter acreditado no que ainda nem existia e quando todos ainda
 duvidavam… E o mais maravilhoso é poder constatar que mesmo hoje, mesmo
 agora, com 4 anos de implante, ainda há novidades e deslumbramento 
sonoro… Após o upgrade do processador, ter ido ao Teatro Castro
 Alves, assistir a um concerto da Orquestra Sinfônica da Bahia, 
utilizando o programa 3 do implante, pra música, foi simplesmente 
incrível… Ouvir a apresentação de uma amiga querida, a quem digo que tem
 a voz de fada, foi como se a estivesse escutando pela primeira vez… Segurei
 mesmo pra não chorar no meio do povo… Atualmente, o sentimento que me 
norteia, ao escrever é simplesmente o da mais pura gratidão… 
Durante o período de quebra do vibrador 
convencional, enquanto aguardava a autorização do plano pro BAHA, fiz um
 curso de meditação e respiração com instrutor internacional… 
Infelizmente, de aparelho quebrado, mesmo sentando na frente, tentando a
 LOF e ficando perto da caixa de som, ainda assim eu não conseguia 
compreender muito do que o instrutor ou o tradutor diziam… E, a despeito
 de estar num curso de meditação, eu longe estive de alcançar um estado 
meditativo… É que superar limites, pra mim, sempre foi 
relativamente fácil… Aceitar um limite que a vida me impunha e eu não 
podia transpor, isto sim que era a maior dificuldade… Sofri 
muito naquela ocasião por não conseguir me superar e fazer o curso com a
 mesma intensidade que os demais participantes… Depois, tive 
oportunidade de repetir o mesmo curso, agora com “os gêmeos”, como 
carinhosamente apelidei os meus BAHINHAS… Pude aproveitar intensamente 
cada minuto do curso e compreender até mesmo a palestrante, independente
 da tradução… Que presente maravilhoso!!! Não exagero ao afirmar que a 
minha sensação é a da mais pura gratidão… A Deus, à espiritualidade, por
 me dar este presente, ao BAHA, por me proporcionar autonomia e 
contentamento e aos meus eternos fono amada e otorrino do coração, por 
serem instrumentos de luz em minha vida…
Por isto, quero compartilhar este 
relato, a fim de que outras pessoas sejam tão beneficiadas como eu fui… 
Tanta alegria o BAHA tem me proporcionado, que eu preciso compartilhar, 
não mereço e nem quero guardar só pra mim… Tomara que tantas outras 
pessoas tenham acesso a todas estas possibilidades que agora se abrem 
para mim.
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